Chama o SAMU: brinquedos também têm hospital

Heloísa D’Angelo e Natália Petroni

Bonecas antigas são as donas do hospital da pompeia.
Bonecas antigas são as donas do hospital da pompeia.

A rua Palestra Itália poderia passar por uma continuação da avenida Pompeia. Apesar de pequena, ela é bastante movimentada: de um lado, o imponente shopping Bourbon; de outro, o marcante Sesc Pompeia; atrás, a gigantesca Arena Palestra Itália. O clima é de correria. Carros se misturam com torcedores de verde e branco, famílias barulhentas, pessoas esperando o ônibus na avenida.

A pequena rua, porem, guarda um segredo anacrônico. Quem passa de carro vê apenas uma mancha vermelha e azul, espremida entre um salão de beleza e um prédio residencial. É só quem passa à pé, relativamente devagar, que consegue distinguir o formato de um enorme logo da Estrela, a maior marca de brinquedos do Brasil, estampado em uma velha porta de vidro. Na maçaneta, um aviso: “toque a campainha”. De dentro, o um barulho de furadeira faz o transeunte duvidar que um som tão baixo possa ser ouvido.

A casa na ruazinha é um hospital de brinquedos: uma oficina especializada em consertar bonecas, carrinhos, forninhos, bicicletas e o que mais der na telha do cliente. “Já me pediram para consertar um trenzinho elétrico de 50 anos de idade. Eu nem tinha as peças, tive que pedir para um colega que tem loja em Osasco”, me conta Jorge Maia, o dono do estabelecimento.

A baçunça é organizada na mente do
A bagunça é organizada na mente do “consertador”.

Jorge parece alto e largo demais para transitar pela estreita e escura oficina, mas trabalha de forma confortável e graciosa entre as inúmeras partes de corpos de bonecas. A Impressão que dá é que o “consertador” é dono de um submundo paralelo, parado no tempo. Bonecas antigas, daquelas que dizem “mamãe” se você der corda, se espalham por toda a sala, que fica atrás de um balcão atulhado de brinquedos para avaliação (Jorge nunca aceita um desafio maior do que sua experiência permite). Carrinhos de controle remoto competem com cabeças de boneca de todos os tamanhos por um pouco de espaço nas prateleiras. Para quem vem da rua movimentada, é um cenário surreal.

Enquanto perfura um cavalo de plástico cujas patas estão bambas, Jorge aponta um armário de arquivo e vai gritando algo a cada gaveta, sob o barulho da furadeira: “Aqui tem braços de Suzie, difíceis de achar por aí; aqui tem engrenagens dessas bonecas velhas, que são todas bem complicadas se você abrir; aqui tem uns parafusos especiais”. Entre as peças, há alguns brinquedos do próprio Jorge: “Eu guardo algumas bonecas, tenho uma máquina de costura e alguns carrinhos. Adoro todos”.

Alguns dos brinquedos de Jorge:
Alguns dos brinquedos de Jorge: “Com esses ninguém brinca”.

O que parece bagunça para quem vê de fora, na verdade é uma organização em código para Jorge: “Eu sei exatamente onde está cada coisa aqui. Mas se alguém arrumar… já era”. Com um sorriso, ele explica que ali, na oficina, não há nem metade das peças que ele precisa: “Se você fosse lá em cima [ele aponta para o andar superior da casa, que é um sobrado], ia ver o que é bagunça de verdade. A gente tem que estar preparado, porque o cliente pode pedir as coisas mais mirabolantes”. Olhando para os helicópteros de controle remoto presos no teto, fica fácil entender.

Jorge explica que os donos dos hospitais de bonecas de São Paulo sempre se ajudam. É como uma pequena máfia: se alguém precisa de uma determinada peça que não existe mais no mercado, é só ligar para o outro, como aconteceu no caso do trenzinho elétrico. “A gente coopera, é um negócio difícil, tem que cavar muito”. Às vezes, nem a “máfia” salva, e Jorge é obrigado a desistir do conserto: “Mas eu sempre falo na hora. É uma questão de experiência: você sabe quando não vai conseguir”.

E como a loja não passa desapercebida, entre tantos prédios e carros? “Nossa clientela é fiel. Ela sabe que se a gente pega uma loja grande, bonitona, isso vai refletir no preço do conserto. Aí, um carrinho que custa 20, 25 reais, vai passar para a faixa dos 40. E ninguém quer pagar isso num conserto de brinquedo. Com 40 reais você compra um novo”, explica ele, agora testando o equilíbrio do cavalinho, que ainda não fica em pé.

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O hospital de brinquedos de Jorge é um negócio de família, aberto nos anos 1980 em parceria com o cunhado, Bartolomeu. O estabelecimento mudou de lugar três vezes dentro do bairro, sempre fugindo da especulação imobiliária – primeiro, por causa da venda do shopping, depois, em decorrência da construção da arena, e agora, nem Jorge sabe: “Já querem comprar de novo, está ficando difícil achar um lugar bom como esse aqui”. Morador da Zona Leste, vai todos os dias bem cedinho para a Pompeia, consertar brinquedos novos e antigos.

Jorge explica que existe um curso da Estrela, oferecido sempre que há o lançamento de um brinquedo novo, para quem quiser abrir um hospital de brinquedos – as oficinas que tem o logo da marca são autorizadas. Jorge, que antes de trabalhar com brinquedos comercializava laticínios, teve problemas no início: “Na primeira vez que eu fui montar uma dessas bonecas (ele aponta uma antiga boneca que faz xixi), eu quase morri, tive que fazer umas quinze vezes até acertar. Perdi um dia inteiro”. As bonecas antigas, ele me explica, podiam chegar a ter três motores. “Precisava saber bem, e eu não sabia, mas aprendi”.

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A maioria dos brinquedos expostos na loja foi esquecido pelos donos. Depois de meses, eles são doados para crianças carentes.

Com tantos brinquedos, os filhos dele devem ficar loucos, eu comento. Ele sorri com a boca, mas não com os olhos, e me conta que o único filho hoje tem 18 anos e não quer nem saber de brinquedo. “Quando ele era criança, era diferente. A gente passava a tarde aqui consertando. Ele fazia tudo errado, e eu tinha que refazer, mas eu dizia ‘parabéns, filho’. Era divertido. Não sei o que houve, deve ser a idade”.

Melhor mudar de assunto. E as crianças, vêm com os pais? Ele confirma, rindo, que elas adoram os brinquedos: “Eu preciso pedir para elas não mexerem, porque tudo o que está exposto é de alguém”. Em tom de segredo, ele revela: “Mas quem me dá mais trabalho mesmo são os adultos, porque tem muita coisa de antigamente aqui. Eles ficam malucos de saudade”.

Ao lembrar dos adultos – querendo ou não, a maior fatia da clientela do hospital -, Jorge bufa. Alguns clientes deixam o brinquedo na loja e, mesmo depois do conserto, não vão buscar. “Os adultos esquecem. Tem carrinho que já está comigo há anos e fica aí, na vitrine, criando poeira”. Ele explica também que, quando o dono do brinquedo não vem por muitos meses, o brinquedo é doado direto para as crianças em situação de rua: “Não gosto de doar para orfanatos, dou direto”. Quando o brinquedo é de uma criança, a coisa muda de figura:  “A criança nunca esquece”.

Na oficina, furadeiras, parafusos e a paciente: uma boneca mecânica.
Na oficina, furadeiras, parafusos e a paciente: uma boneca mecânica.

Mas e os tablets? E os videogames? A criançada não prefere a tela touch? Jorge dá uma risada, desliga a furadeira e pega o cavalo na mão. Ele está pronto; as perninhas firmes. “Uma criança pode até gostar de games, mas dá um brinquedo desses para ela e vê se ela vai preferir o digital. Não vai. Criança gosta de pegar, de mexer, de descobrir. E esse é meu trabalho”.

Mas não precisa ir até a Pompeia arrumar os brinquedos, caso você more em outro lugar. Alguns outros bairros também disponibilizam o serviço, como Santana, Penha, Campo Belo e Itaim Bibi. O que muda um pouco é a estrutura do hospital. No Itaim, a estrutura já é maior e a loja, chamativa. Fica na esquina da Pedroso de Alvarenga, endereço nobre da cidade. As atendentes comentam que chegam muitas crianças acompanhadas pelos pais, mas que o público mais forte são os adultos, desesperados pelo conserto de um velho brinquedo que os pertencia ou de um novo que foi dado ao filho.

Esquina em que se encontra o hospital. Vermelho para chamar a atenção
Esquina em que se encontra o hospital. Vermelho para chamar a atenção

A entrada, lotada de quadriciclos infantis, dificulta a chegada até o balcão. A atendente fica rodeada de bonecas de pano, bichinhos de pelúcia, brinquedos feitos em madeira e caúbóis faltando um olho. Mas o que mais chama a atenção por trás do vidro são os famosos bonecos do filme “Toy Story”, o Buzz Lightyear, objeto de desejo durante muito tempo e até mesmo atualmente.

Brinquedos embalados aguardado o dono
Brinquedos embalados aguardado o dono

Apesar dos hospitais existirem desde 1937, se modernizaram ao longo do tempo: além de consertarem produtos eletrônicos, conseguiram fazer parte do ambiente virtual de maneira eficiente: possuem um site completo, e-mail e telefone para contato e uma página no Facebook. Em todos eles constam os endereços dos hospitais, que aguardam a próxima queda, pife ou perca de uma peça.

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Na prateleira, os “pacientes” prontos para levar alta.

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