Fomos para Bororé

Por: João André Fraga, José Mauricio Besana, Mathias Duncan, Olga Bagatini e Victor LaRegina

Igrejinha fundada em 1904 é a construção mais antiga da Ilha do Bororé
Igrejinha fundada em 1904 é a construção mais antiga da Ilha do Bororé

Geógrafos costumam estufar o peito quando questionados sobre a diferença entre península e ilha. Se uma grande porção de terra é cercada por água por todos os lados, não adianta chamar de ilha, pois a pequena ligação que existe com o continente torna aquele espaço uma península. Em Bororé, o pequeno território tem uma ligação com a maior cidade do Brasil, mas, ainda assim, podemos chamar esse peculiar bairro paulistano simbolicamente de “ilha”.

Foi assim que essa região, a 25 km do centro, no extremo sul da cidade, ficou conhecida. Atualmente, é chamada oficialmente de Área de Proteção Ambiental (APA) Bororé-Colônia, por possuir inúmeras nascentes, córregos e ribeirões que drenam para as Bacias Guarapiranga e Billings. Quase 200 anos após seu descobrimento, Bororé conta com um posto de saúde municipal, uma escola pública estadual e gigantes viadutos do Rodoanel que cruzam o seu território. Porém, nenhum acesso direto ao bairro foi feito pelo governo estadual. Quando o assunto é transporte, o vilarejo ainda é uma ilha dependente de uma balsa que funciona a base de uma engrenagem.

Extremidade de Bororé com o Rodoanel ao fundo.
Extremidade de Bororé com o Rodoanel ao fundo.

A balsa poderia ser uma ponte. Um elo de desenvolvimento entre os moradores da pequena península na Represa Billings e os turistas de Capela do Socorro e de Parilheiros. Mas como o local ainda não consegue se sustentar somente com o turismo, a balsa se torna o maior pesadelo daqueles que vivem em Bororé-Colônia. Para André Firmino da Silva, ex-presidente da Associação de Moradores da Ilha de Bororé (AMIB) e morador do local há mais de 25 anos, nunca houve interesse em ligar a antiga vila aos bairros comerciais de São Paulo.

“Aqueles que trabalham no centro de São Paulo, por exemplo, têm que estar na fila da balsa por volta das quatro horas da manhã para não se atrasarem”, explica André. Mas e aos finais de semana? É mais tranquilo, não?

“Meu filho, vocês deram sorte que hoje está chovendo. Sábado é dia da fila demorar horas!” O aposentado contou que chegaram a ter esperança em 2010, quando foram noticiados sobre a entrega de um trecho do Rodoanel Mário Covas, que passaria por cima da Ilha. Segundo o morador, foi prometido a eles um acesso à rodovia, o que facilitaria o transporte para a população local. Chegaram a construir uma estrada entre a península e Varginha, para os caminhões da obra passarem. O trecho foi inaugurado e há de fato uma ponte que passa poucos metros acima da ilha. Mas o acesso à ilha continua negado.

No geral, o clima é bucólico. A neblina e a represa fazem de Bororé um lugar aconchegante, longe da correria da cidade grande. É justamente isso que atraiu seu André Firmino, fundador e ex-presidente da AMIB. Ele chegou até a península para trabalhar como caseiro e nunca mais quis ir embora. Há problemas, reconhece, como o comércio, mais caro devido ao difícil acesso até a região. A situação ainda é mais complicada com os habitantes da balsa dois. É assim que os moradores chamam o lugar além do segundo canal da Billings que corta Bororé. No outro lado da margem, as ruas ainda são de terra, e a única linha de ônibus que corta o bairro (6L11-10 Term. Grajaú – Ilha do Boreré) não acessa a região.

Seu André mora há mais de 30 anos na Ilha e admite que a situação melhorou nos últimos anos
Sr. André mora há mais de 30 anos na Ilha e admite que a situação melhorou nos últimos anos

O aposentado Osmar Denelev, que mora na ilha há 35 anos, perdeu as esperanças de ver uma ponte ligando o bairro à capital quando a balsa, fundada em 1936, foi considerada um ponto turístico da cidade de São Paulo. “A balsa é o maior problema daqui. Nós temos dois pontos turísticos considerados pela prefeitura: uma igreja fundada em 1904, tombada pelo patrimônio histórico, e a balsa, considerada um ponto turístico”, disse o aposentado.

Além das balsas, o outro único acesso é a estrada de terra. Nenhum soluciona o fluxo de carros, algo muito comum em toda a São Paulo, mas a situação piora aos fins de semana, quando a travessia de balsa atrai os demais paulistanos. Por se tratar de uma APA, Bororé não pode se dar ao luxo de permitir e atrair um grande contingente de carros. Contudo, o Estado forçou a construção de uma parte do Rodoanel no meio da Ilha de Bororé. Uma via de escoamento importante que corta uma área protegida.

Balsa de Bororé- Colônia
Balsa de Bororé- Colônia

Os habitantes do local não possuem modos de acessar essa via. A lei de proteção não funciona para todos, enquanto toda e qualquer mudança na região deveria atender aos objetivos dos moradores, melhorando sua qualidade de vida. “Ou seja, ponte mesmo a gente nunca vai ver aqui”, completou Osmar.

A balsa liga a península ao bairro do Grajaú e leva cerca de cinco minutos para fazer a travessia. Ela é operada por uma empresa privada, a Empresa Metropolitana de Água e Energia (EMAE), que é ligada ao governo do estado. Ela funciona 24 horas e leva até ônibus junto. A linha 6L11-10 é a única que alcança o território saindo da estação Grajaú da CPTM.

Entre as duas balsas se aglomera uma dezena de casas irregulares. Além de estarem muito próximas das margens da represa, as residências ficam a poucos metros de fios de alta tensão. Porém, não são barracões, mas casas bem acabadas, com janelas de alumínio e sistema hidráulico, e pertencem às pessoas da chamada “classe C em ascendência”, que gozam de um certo poder aquisitivo, mas ainda têm que fugir da alta especulação dos centros urbanos. A onda de moradores que atingiu a península é exemplo disso.

Ainda assim, para Benedito Eduardo da Silva, o local está mais razoável do que quando chegou, em 1982. “Claro que poderia ser melhor, mas a qualidade de vida melhorou aqui, principalmente depois que houve mais coleta de lixo”. Quanto à violência, não há muito com o que se preocupar. “Volta e meia acontece uma desova aqui”, contou o morador que foi presidente da AMIB no começo de 2000, “Ai a gente vê se reconhece. Geralmente não é daqui, é gente envolvida com drogas e pessoas erradas, que jogam o corpo para cá para se livrarem do problema. Mas aqui é tranquilo. E tem muita história para contar.”

Terreno da Elétropaulo.
Terreno da Eletropaulo.

A história do patrono local já rende uma boa narrativa e guarda estranha semelhança com a história da região. Por ordem de Diocleciano, então imperador romano, o indesejável traidor da guarda Pretoriana foi atirado nos esgotos subterrâneos de Roma, para que ficasse claro todo o desprezo do governante. Em Bororé, além dos eventuais cadáveres, também são atirados para o esquecimento carros, sejam eles frutos de roubos ou consequência de algum golpe em seguradora. Assim como os corpos, são casos isolados, mas o difícil acesso até a península fazem das velhas ferragens dos automóveis parte constante da paisagem da colônia.

Tratando-se de qualidade de vida, Bororé apresentou algumas melhoras nos últimos anos. O transporte público deu salto e agora atende às necessidades dos locais. Energia elétrica, segurança, serviços de telefonia e de correios também cruzaram a balsa e chegaram à ilha. Tanto que não é comum a vontade dos moradores de deixar o local e se aventurar pela selva de pedra.

Ocupação irregular às margens da Represa Billings.
Ocupação irregular às margens da Represa Billings.

Água e esgoto encanados ainda são uma reivindicação da população. A necessidade desses serviços é latente, e sua falta cria um enorme problema de saúde pública na região. Cada propriedade é responsável pelo fornecimento de água e pela construção de uma fossa. Porém, sem o planejamento devido, essas fossas vem sendo feitas perto de poços artesianos, o que faz os casos de infecção pela água aumentarem. Não apenas os moradores passam pelo risco, mas todos que desfrutam da água em São Paulo.

Origem

Fundada por colonos alemães em 1829, a chamada Colônia Alemã abriga alguns dos monumentos mais antigos de São Paulo, com o Cemitério da Colônia, o mais antigo da cidade e o primeiro cemitério protestante do país, fundado em 1840. Por causa do difícil acesso, a península não se desenvolveu na mesma velocidade dos arredores. Assim, ao dirigir pela Estrada de Itaquaquecetuba, logradouro que cruza a Ilha de Bororé, é possível encontrar uma igreja fundada em 1904 e uma casa de taipa que está lá desde 1870, ambas em perfeito estado de conservação, o que dá a impressão de que estamos em outra cidade. Talvez até outra época, se não fosse por algumas construções desordenadas às margens da Billings.

A primeira família alemã a residir em Bororé foi a Heinberg, agricultores que viviam de maneira reclusa, antes da onda de europeus que viria pouco mais tarde, com o ciclo do café. Logo cedo esse povo deixou sua marca cultural, com a criação do Cemitério Protestante, mas Bororé também é uma referência para os católicos que faziam peregrinações em nome de São Sebastião, até o local onde hoje existe a capela.

Grileiros e a questão da água

A garoa é de São Paulo, o clima é de cidade do interior, mas os problemas são tão grandes quanto o tamanho da metrópole que parece engolir a Ilha do Bororé. A São Paulo do início do século 20 era cercada de rios, córregos e nascentes; a cidade esbanjava água e saudava a garoa. Água que hoje em dia está em falta ou transbordando dejetos sem fim.

Para que este cenário não se repita na Ilha do Bororé, importante área de drenagem para a formação das represas Billings e Guarapiranga, a prefeitura de São Paulo decretou, por meio de uma lei municipal, em 2006, a criação de uma Área de Proteção Ambiental (APA) na região de Bororé-Colônia. No papel, a ideia parece fantástica. Na prática, contudo, a lei está indo para o ralo.

As imagens de satélite mostram que a ocupação, muitas vezes ilegal, aumentou consideravelmente de 2005 até 2015. E pra piorar, de forma irônica, a chegada de novos moradores deu um salto após a criação da lei. É claro que as APAs preveem a liberação de novas áreas para moradia, desde que de forma sustentável e harmoniosa, como tem que ser feito em um sistema tão delicado como o de Bororé-Colônia.

Apas

O assunto é quente e gera atritos entre os moradores do local. Muitos afirmam que grileiros atuam constantemente e que não há fiscalização alguma. Outros negam veementemente e refutam qualquer ocupação ilegal. Mas podem ser vistos moradores irregulares, principalmente nas margens e ao longo dos sistemas de distribuição de energia elétrica.

O grileiro age da seguinte maneira: diversas propriedades estão esquecidas e com o imposto rural atrasados. A multa não é alta e se torna um convite para o grileiro, que paga as dívidas e invade a área. O lote pode, então, ser vendido, adquirido ou repassado. Muitos herdeiros desconhecem a posse dessas propriedades ou não se importam com o domínio dos grileiros, o que agrava o problema. A situação poderia ser mais controlável se os cidadãos se conscientizassem e se unissem para combatê-lo.

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