Poeta Invisível

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As estéticas produzidas pelas periferias de São Paulo ganham uma nova visibilidade, novas tecnologias contribuem a favor da multiplicidade de estéticas. Quanto ao valor cultural que tem as estéticas da periferia é inquestionável a importância dessas expressões no conjunto da diversidade que nos caracteriza, nossa cultura é plural, por isso as estéticas centrais e periféricas, como práticas literárias na periferia compõem essa multiplicidade. Fomos ao encontro do Poeta Carvalho, na periferia de São Paulo e nos surpreendemos com o impacto cultural positivo que ele e seus admiradores (amantes de sua poesia) estão construindo no bairro.

Numa esquina da rua Carnot em São Paulo, bairro Canindé – Pari conhecemos o Poeta Carvalho. Encontra-lo foi simples, um personagem muito conhecido na vizinhança, nos indicaram onde ficava a sua casa, quer dizer, metade casa, metade barbearia. Aparentemente não tinha ninguém, pelas portas de vidro conseguíamos observar seus objetos de trabalho, uma placa na vertical dizia na porta “Poeta e Compositor Carvalho”, o que despertou ainda mais a nossa curiosidade, afinal era uma barbearia. Muito bagunçada, com uma decoração extremamente original, porém modesta. Um dos clientes do Poeta passou por nós e comentou: “Daqui a pouco ele aparece, deve estar almoçando. Vieram ver as poesias?”.

Quase dez minutos depois ele apareceu, vestido com um avental branco, cabelos grisalhos, sapatos sociais pretos surrados, ele abriu a porta para nós com um olhar desconfiado, nos apresentamos e fomos convidados para entrar. Nos sentamos nas cadeiras de plástico dos clientes, um homem sem cerimônias, rapidamente começou a conversar. José Ferreira de Carvalho, hoje mais conhecido como Poeta Carvalho, conquistou o respeito de muitos moradores do bairro, nasceu em dezembro de 1932 na Vila Real – Portugal, acabou vindo para o Brasil por conta das consequências da segunda guerra na Europa, nos contou que ouviu boatos que o Brasil provinciano era melhor para construir uma vida digna.

Chegando no Brasil, aos 21 anos começou a trabalhar como vendedor numa padaria no Ipiranga, ficou nesse ramo quase dois anos, aproveitamos o assunto para perguntar sobre o seu interesse na poesia, ele nos disse sorrindo: “Tentei trabalhar com tudo

quanto é tipo de coisa, logo depois trabalhei com ouro, prata e cobre, mas não gostei…Resolvi montar o meu negócio, foi então que comecei a cortar cabelos e fazer a barba. A poesia acabou vindo junto, comecei a escrever pela ausência da minha mãe, era uma saudade grande de Portugal. Anota isso ai por favor: na arte capilar de cortar cabelo e não capim, eu e meus colegas somos artistas que mantemos a boa aparência da face, humanidade que Deus criou”.

Percebemos o quão a vontade ele estava se sentindo contando sobre a sua vida, aos 83 anos cheio de opinião sobre o Brasil, fez questão de repetir várias vezes: “O Brasil não merece a democracia, sou a favor da ditadura, a lei brasileira é fraca demais, pra vocês jornalista a ditadura não era boa, mas só 20% de vocês prestam, o resto não consegue ser imparcial, tudo vendido pela mídia”. Apesar de admirar a “pureza” do país assim que chegou de Portugal, acompanhou de perto as mudanças positivas e negativas dos governos. Escreveu muitas crônicas, poesias e músicas sobre as mesmas mudanças, com a intenção de expor o que ele julga completamente errado no Brasil.

O início da sua carreia como barbeiro foi no Ipiranga, mas decidiu se mudar para o bairro do Pari porque facilitava sua locomoção até o seu clube favorito e por conta das despesas. Aproveitamos para perguntar sobre futebol, ele logo respondeu apontando para o quadro com o símbolo do time: “Sou torcedor da Portuguesa é claro, apesar de achar futebol coisa de burro, a bola é muito burra e fica todo mundo correndo atrás”. Rimos, e voltamos as poesias fixadas num fichário, muito atencioso, leu várias delas para nós, cantou algumas músicas marcando com os pés o ritmo. Escrever para o Poeta Carvalho não pode ser ficção, ele só escreve coisas reais, sua inspiração vem de pequenos acontecimentos diários. Sua linguagem é simples, as pontuações dos poemas ganham regras próprias, algumas palavras merecem ser escritas em letra maiúscula, diante da sua importância. Um bom conversador, gentilmente falava mais do que nos ouvia.

“De modo geral as estéticas populares periféricas mobilizam códigos e significados menos comportados, pois emanam como solução imediata às práticas de sobrevivência, geralmente, árduas. Muitos das manifestações estéticas da periferia emergem com certa espontaneidade e, enquanto expressão de desejos de populações, pode afrontar as estéticas centrais e os códigos morais vigentes. Deixa-se, muitas vezes, de apreender

ou reconhecer os conteúdos revelados por tais estéticas, por pré-conceitos que definem a arte e seu papel, ou por descrença nas qualificações desse público criador e reprodutor de tais estéticas.

Um outro exemplo de subversão das estéticas da periferia está assinalado nas características assumidas pelo modernismo em São Paulo e no Brasil. Aqui transformamos os princípios da arte e da estética vigentes a partir da redefinição antropofágica de nossas influências europeias e eruditas somadas aos traços mais populares de nossas manifestações culturais.

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No entanto, nem sempre as estéticas periféricas têm força para subverter os padrões culturais mais oficiais. Ao longo da história poderíamos identificar diversas manifestações que, embora incríveis, ousadas e criativas, não conseguiram a adesão necessária para fazerem oposição ao discurso das estéticas centrais.”

No trecho Heloísa Buarque de Holanda exemplifica o contexto em que vive o Poeta tentando propagar sua arte na região periférica de São Paulo, as manifestações culturais vêm ganhando força, encontramos moradores como o Milton Gomes de 67 anos que estudou até a segunda série do ensino médio, mas ao conhecer o Poeta e o seu trabalho despertou interesse na poesia, costuma passar várias tardes de sábado lendo as inúmeras folhas espalhadas pela barbearia.

O que reparamos é que a casa do José acabou virando um “pequeno centro cultural” do Pari, quase que um refúgio dos moradores do bairro, uma forma de encontrar conforto na arte, distração depois de dias cansativos trabalhando na feirinha da madrugada que acontece por lá. Carvalho não possui conhecimento ortográfico, estudou até a quarta série do ensino fundamental, mas isso não o impede de ter uma imaginação fértil para compor músicas e escrever poesias sobre fatos reais da vida cotidiana, dinheiro, injustiça, amor, velhice, jovens, sexo, pornografia, drogas, etc.

Deixou para trás três irmãos em Portugal, “Éramos sete filhos, quatro mulheres e três homens, agora só tenho contato com a Emília e o Ernesto. Fui visita-los uma vez, o lucro é curto cortando cabelo, vivo com pouco porque quero, se eu quisesse ganhar dinheiro venderia todas as minhas músicas, isso ai dava riqueza”. Entre um cliente e outro, continuávamos a nossa conversa, muitas mães da região levam seus filhos para cortar o

cabelo na barbearia do Poeta, elas alegam a paciência do sujeito com crianças. Grande parte dos clientes, a maioria homens, já tornaram-se amigos íntimos do José, estão acostumados a ouvir suas poesias enquanto cortam o cabelo, conversam sobre política e jogam conversa fora.

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Perguntamos sobre as suas referências na literatura, ele confessou que já leu Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa, mas não gosta de nenhum deles: “Eles todos só sabem escrever sobre coisas que não existem, eu escrevo coisas que existem, tudo real. Olha aí essa poesia sobre a minha amiga abelha que veio beber água da minha torneira, isso realmente aconteceu, esses escritores viveram de ficção.” No desenrolar das horas, ele demonstrava em diversos temas alguns tipos de preconceito, se dizia contra a liberdade de expressão, defendendo a ideia de que os humanos não têm limites, deveriam ser mais educados, controlados pelo governo.

Suas expressões são muitas vezes metafóricas, aos poucos fomos pegamos intimidade com as palavras do Poeta Carvalho. Entramos no assunto solidão, ele rapidamente virou-se para o armário para apanhar uma poesia feita para o seu último amor, uma menina de apenas 18 anos que trabalhou alguns meses na barbearia como ajudante, nos explicou que não houve qualquer tipo de relação afetiva, mas não deixou de ser um “amor”, após ler a poesia ficou fácil compreender o tipo de sentimento exposto nos versos, claramente admiração. Percebe-se no seu tom de voz orgulho ao falar das suas 17 namoradas, a maioria delas iludidas pelo futuro casamento que nunca aconteceu. José escolheu a vida de solteiro, apesar da solidão estar presente dentro da sua casa, não lhe falta amigos e companhia durante os dias de trabalho na barbearia.

A saúde, as condições físicas e mentais ainda não foram afetadas pela velhice, ele consegue caminhar muito bem. Um personagem repleto de personalidade, ele sabe se “virar” melhor do que grande parte dos jovens. Suas composições são produzidas com um amigo músico, o Poeta escreve as letras e o amigo a partitura, já as poesias são escritas a mão de início, logo depois são levadas a uma Lan House para um funcionário da loja digitar e imprimir. Difícil não se encantar com tamanha peculiaridade, por conta da saudade José encontrou acolhimento nas palavras, e passou adiante os segredos desse acolhimento para moradores do Canindé.

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